“A nossa relação conta já com 11 anos. Dois anos após termos começado a namorar, descobri (por acaso) uma infidelidade, virtual mas uma infidelidade. Ainda assim, resolvi perdoar (sem esquecer), ficar e dar uma oportunidade. Às vezes, olho para trás e questiono se procedi bem ao fazê-lo. Questiono como tudo teria sido se tivesse tido a coragem de terminar com o nosso namoro naquele momento.
Recentemente, descobri (novamente por acaso) que ele/ela me mente há mais de quatro anos. Desta vez, nada tem que ver com uma terceira pessoa, mas é de novo uma mentira, ou uma omissão, como queiramos chamar. Não procurei nada, soube por um amigo, mas o mundo caiu-me aos pés, o meu corpo congelou e o coração doeu de uma forma que as palavras não permitem expressar. Uma dor tão profunda que não consigo sequer verbalizar. Mas pior do que descobrir uma mentira é a pessoa continuar a mentir. Confrontado/a, negou! Só mais tarde, bem mais tarde, com muito, muito custo, cedeu à verdade. E dói tanto compreender que a pessoa a quem decidimos entregar e partilhar a nossa vida nos está deliberadamente (e descaradamente) a mentir. E a mentira dói de uma forma profunda. Mais do que uma mentira esmaga completamente!
E continua a doer mais e mais quando penso que outras pessoas o/a conhecem melhor do que eu, que sabem mais da vida dele/a do que eu. O que pensarão sobre mim? Terão pena? Como acha que me sinto quando percebo que os outros, sim, conhecem verdadeiramente a pessoa com quem vivo e a quem me entrego? Ele/ela terá pensado em tudo isto? Porque raio não pensou no que aconteceria se eu descobrisse? Estarei como garantida/o? Porque raio não me contou para que eu tentasse ajudar? Talvez por ter pensado que eu nunca descobriria. Talvez não, de certeza. A frase daquele amigo não estava nos planos.
E como é que agora se permanece numa relação em que nos sentimos enganados, desrespeitados, esmagados mas em que continuamos a amar? A amar, sim, são 11 anos de momentos tão bons! Mas conseguirá o amor enfrentar efetivamente todos os obstáculos? O que faço com esta dor? O que faço com esta permanente desconfiança e insegurança que sinto? Conseguirei voltar a sentir-me segura/o? Serei fraca/o por querer ficar? Serei fraca/o por querer ir? Qual é a fronteira entre a capacidade de perdoar e a minha dignidade?”.
Para refletirmos
- Se pensar na minha relação, como a descrevo? O que valorizo? Onde reside o meu (nosso) foco? Quais são as suas potencialidades e fragilidades? Na relação existe espaço para a individualidade? Para a autenticidade? Para a interdependência? Para a intimidade emocional? Compromisso mútuo? Posso ser, verdadeiramente, eu próprio sem receio de ser julgado pela pessoa que escolhi e que me escolheu? Que expectativas tenho sobre o outro? Que expectativas tem o outro sobre mim? Que quadros de significação podem ter-se criado numa relação que levam a que o outro esconda “uma verdade” sobre si? Não escolhemos “passar o resto da nossa vida” ao lado da “ nossa pessoa” conhecendo já o melhor e o pior dela e ela de nós? Como nos damos a conhecer ao outro? Como é que o outro se dá a conhecer?
- No amor, tal como em todas as relações íntimas, existe o sofrimento, a mágoa, a dor. Cada um de nós enfrenta cada uma delas de forma única, com uma maior ou menor flexibilidade, com mais ou menos capacidade de adaptação. Em alguns casos, perante grandes tempestades, alguns barcos podem não resistir à fúria das chuvas e dos ventos e acabam por afundar; noutros casos, as tempestades obrigam a que um barco mude o seu rumo, o que origina uma mudança positiva no seu caminho, de fortalecimento. No entanto, neste novo caminho, será sempre necessário (re)definir novas fronteiras para os utilizadores desse barco e repensar de que forma este novo percurso pode ser percorrido, que outras ferramentas precisam de ser utilizadas para que não haja risco de afundar novamente.
- A capacidade de perdoar, tal como o sentimento de dignidade, implica que conheçamos os nossos limites, as nossas fronteiras nas relações que estabelecemos com os outros. “Ir ou ficar” estará relacionado, precisamente, com este autoconhecimento e não com “fraqueza”. Na situação relatada, e em outras mais ou menos semelhantes, é necessário analisar e avaliar as razões e motivações pelas quais se decide “ir ou ficar”; compreender se vamos ficar para lutar pelo “eu”, pelo “tu” e pelo “nós”, ou se ficamos porque não sabemos qual é a alternativa que temos se escolhermos ir embora. “Quem sou eu fora desta relação? Como seria a minha vida? Não sei, então fico porque é esta a realidade que conheço”. Por outras palavras, o que será mais cómodo para mim? Mas acomodação não rima com amor, rima com não estarmos sozinhos. Mas estarmos somente acompanhados não é Amor. Tomemos decisões com bases positivas, ancoradas naquilo que queremos.
- Vivemos numa época em que tudo é tão intenso, como fugaz, uma vida muitas vezes volátil, frágil, sem bases firmes, de momentos instantâneos de prazer que, rapidamente, nos trazem aborrecimento, insatisfação, pouco investimento e procura de novos estímulos. E com tanta rapidez e mudança, por vezes, não nos conhecemos, não conhecemos o nosso companheiro, nem (re)conhecemos a nossa relação. Mas o amor não se coaduna com a estranheza. Não sejamos desconhecidos para quem nos ama. Sejamos mais investidos, mais autênticos, mais transparentes, mais incansáveis, mais amantes, mais atenciosos, mais atentos. Menos preguiçosos, menos desmazelados, menos adormecidos, menos passivos. O amor, tal como a sociedade de hoje em dia, também precisa de cuidados, de estímulos, de surpresa, de proatividade, de verdade. É como fazermos “scroll”, não termina, é infinito, suscita-nos uma curiosidade incessante, um desejo por mais, uma vontade constante de estar ligado pela surpresa que nos espera; quando nos cansamos, dá-se uma paragem até que voltamos a ter curiosidade por novidades ou fazemos nós mesmos a novidade. Que tal fazer do Amor um “scroll” infinito? Ter a rotina, importante e necessária, mas também fazer por ter tudo o resto que nos motiva e que nos faz querer mais.
- O choque da mentira, da quebra de confiança, a falha de comunicação, a desilusão, o desapontamento, podem causar grandes mossas numa relação, constituindo as razões e motivações que nos podem fazer abandonar. Porém, muitas outras razões podem levar-nos a permanecer. E outras tantas que nos podem fazer acreditar no potencial da nossa relação, no nosso, no do outro, que nos permita ultrapassar até as mais duras adversidades. O importante para que isto aconteça é que as mágoas não sejam representativas do todo e que, quando pensarmos na nossa relação, consigamos vislumbrar mais aspetos positivos do que negativos. A dor não será certamente esquecida mas a forma como olhamos para as situações pode alterar completamente a forma como agimos sobre elas. Se olharmos para este caso como “já é a segunda vez, mais uma mágoa, já não é desculpável”, ou se olharmos como “são falhas que estão a causar muito sofrimento, pelo que é necessário que o casal se ajuste e que compreenda o que pode fazer de diferente para prosseguir com um rumo novo”. Cada um saberá qual a dimensão da dor que trará no olhar.
- No entanto, não se pode “amar pelos dois”. Numa relação formamos uma equipa, o que exige dedicação, empenho e investimento de ambos. Não se trata de receber exatamente o mesmo daquilo que se dá, falamos antes de interdependência, partilha de valores e de objetivos, de partilhar alegrias e sorrisos, de dividir tristezas e lágrimas, de reciprocidade, de adaptação e flexibilidade. Se não existe esta mutualidade, amará pelos dois, mas ama-se a si? Amará mesmo o outro? Entre o caminho do comodismo, da conformação e do desencantamento, escolha os dois: amar e ser amado.
- Mas, por vezes já não amamos “aquela” pessoa. Amamos a imagem que construímos dela, o que desejamos fazer com ela, o futuro que sonhamos ter ao lado dela. Amamos a idealização dessa pessoa, amamos que ela seja a “pessoa dos nossos sonhos”. Mas nós mudamos, o outro muda, o que hoje nos leva ao céu, amanhã pode só deixar-nos numa nuvem cinzenta. Conseguirá o laço emocional adaptar-se a estas mudanças (muitas vezes normativas) em cada um dos cônjuges e, consequentemente, na relação? Conseguirá reapaixonar-se pela mesma pessoa? Quererá?
- Um clichê, eu sei, mas às vezes precisamos de perder, ou de nos perder, para encontrar, para valorizar (mais). Para reencontrar, sobretudo, a nós mesmos. Por vezes, temos que nos perder no caminho para encontrar o nosso caminho, caso contrário, continuamos perdidos, só não o sabemos. Ou não queremos saber. É este o poder do processo de autoconhecimento e que traz o fascínio da Psicologia. Um processo, sim, “para a vida toda”. Para conhecer o outro, para conhecer a nossa relação é essencial que nos conheçamos a nós mesmos.
- Termino com a base de tudo. O Autoconhecimento. Conhecermo-nos profundamente para estarmos e sentirmo-nos seguros, para sabermos quem somos, o que queremos, o que não queremos, para onde pretendemos ir, com quem pretendemos ir e partilhar, para nos sabermos merecedores, para compreendermos como podemos ser mais e melhor e se o queremos ser, com quem queremos ser e estar e o que queremos mudar.
Se o amor é ou não capaz de superar todos os obstáculos, só cada relação o saberá. Só cada um conhecerá o seu “ser e estar” na díade conjugal. Só quem está na relação saberá como analisar as suas fragilidades e potencialidades, a sua forma de crescer e alimentar o amor, as bases (firmes ou não) da sua dinâmica conjugal. Este casal terá agora que percorrer todo este caminho, redefinindo novas fronteiras e limites, melhorando a comunicação, reconstruindo a confiança, reafirmando o compromisso.
O amor precisa de cuidado, de zelo, de atenção, de carinho, de vida, de verdade. Precisa da “não garantia” que nos faça lembrar que precisamos de investir, de ter gestos, de sermos proativos, e não esperarmos apenas que o amor, por si só, faça o trabalho, “vença tudo”, como no “felizes para sempre”, e no “nada/ninguém pode separar”.
Boas reflexões para todos 🙂